domingo, 8 de janeiro de 2012

FERNÃO DE MAGALHÃES GONÇALVES

FERNÃO DE MAGALHÃES GONÇALVES
1943 - 1988
Poeta, escritor, investigador e ensaísta, nasceu em Jou (Murça) e leccionou em Murça, Vouzela, Porto, Chaves e nas Universidades de Granada (Espanha) e Seoul (Coreia do Sul). Autor de uma quinzena de livros publicados e alguns outros ainda inéditos. A sua poesia revela, a par de uma sólida e inovadora estrutura formal, o mundo sensível em que se movia, os apelos da terra-mãe, os arcanos da memória e as vibrações mais íntimas da sua personalidade. O seu acto poético foi sempre uma porta para a aventura criadora expressa em imagens emotivas mas também racionalizadas, na apreensão dos ritmos da água, do corpo, das ervas, da terra e seus aromas. (. . .)

1 comentário:

  1. A CHUVA

    um poema longo e constante como a aspersão da chuva

    por montanhas e planícies descem os pinhais até ao mar
    sobre eles sinto roçar o manto do prometido deus
    das nuvens enroladas pelo vento de cabelos soltos
    um poema que desça até à asfixia da memória
    uma retirada clandestina de palavras sem destino e sem credo
    um poema desta desolação cinzenta e circular
    diagonal à minha angústia que não engane
    as lágrimas que o prometem

    e que chova
    e a terra se abra e as paredes se lavem
    e a torrente divida
    a lisa adivinha do meu íntimo regresso

    um poema mais largo que a folha de papel azul do processo
    um rego de tinta que nenhuma pena comporte que
    nenhuma palavra endireite e vá encharcar
    as tiras dos poetas inspirados

    um poema de chuva que nos arredonde os olhos madrugadores
    e onde cada verso se levede e informe
    eu peço à chuva um poema violento como o vento que a trouxe
    um poema gelado derramado pelas rugas e dobras do meu corpo
    chova um poema nas palmas das minhas mãos e elas o amparem
    como a planície ampara a chuva com a sua boca sôfrega de areia
    um poema que traga do fundo da nossa revolta evaporada
    o encontro que nos devolva à madrugada de um dia perfeito
    um poema onde chova toda a saudade que nos prende os braços
    à memória dos destinos repetidos

    um poema aspergido com urgência que nos sacuda das mãos
    os gestos rituais
    um poema natural e inevitável que detenha à porta quem o ler
    e se anuncie nas nuvens e na fuga dos pássaros e sobre os horizontes

    chova um poema de chuva
    um poema sem poeta
    e entenda-o quem ensinou às andorinhas o seu caminho de inverno
    um poema inoportuno
    que tenha de ser ouvido por todos até ao fim
    que nos suponha como o chão que bebe a chuva
    um poema maligno e irrestricto
    praga do Egipto
    sem um profeta que o vá vender
    a um faraó descalço e coroado
    em nome de um deus vivo e inventado

    eu peço à chuva um poema de chuva
    eu quero ser chuva e transformar-me
    em todas as coisas evaporadas
    enroladas
    pelos cabelos do vento

    e se devolva à terra o seu perfume
    e à servidão humana o seu desejo

    In Andamento F.M.Gonçalves

    mg.

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