FERNÃO DE MAGALHÃES GONÇALVES
1943 - 1988
Poeta, escritor, investigador e ensaísta, nasceu em Jou (Murça) e leccionou em Murça, Vouzela, Porto, Chaves e nas Universidades de Granada (Espanha) e Seoul (Coreia do Sul). Autor de uma quinzena de livros publicados e alguns outros ainda inéditos. A sua poesia revela, a par de uma sólida e inovadora estrutura formal, o mundo sensível em que se movia, os apelos da terra-mãe, os arcanos da memória e as vibrações mais íntimas da sua personalidade. O seu acto poético foi sempre uma porta para a aventura criadora expressa em imagens emotivas mas também racionalizadas, na apreensão dos ritmos da água, do corpo, das ervas, da terra e seus aromas. (. . .)
A CHUVA
ResponderEliminarum poema longo e constante como a aspersão da chuva
por montanhas e planícies descem os pinhais até ao mar
sobre eles sinto roçar o manto do prometido deus
das nuvens enroladas pelo vento de cabelos soltos
um poema que desça até à asfixia da memória
uma retirada clandestina de palavras sem destino e sem credo
um poema desta desolação cinzenta e circular
diagonal à minha angústia que não engane
as lágrimas que o prometem
e que chova
e a terra se abra e as paredes se lavem
e a torrente divida
a lisa adivinha do meu íntimo regresso
um poema mais largo que a folha de papel azul do processo
um rego de tinta que nenhuma pena comporte que
nenhuma palavra endireite e vá encharcar
as tiras dos poetas inspirados
um poema de chuva que nos arredonde os olhos madrugadores
e onde cada verso se levede e informe
eu peço à chuva um poema violento como o vento que a trouxe
um poema gelado derramado pelas rugas e dobras do meu corpo
chova um poema nas palmas das minhas mãos e elas o amparem
como a planície ampara a chuva com a sua boca sôfrega de areia
um poema que traga do fundo da nossa revolta evaporada
o encontro que nos devolva à madrugada de um dia perfeito
um poema onde chova toda a saudade que nos prende os braços
à memória dos destinos repetidos
um poema aspergido com urgência que nos sacuda das mãos
os gestos rituais
um poema natural e inevitável que detenha à porta quem o ler
e se anuncie nas nuvens e na fuga dos pássaros e sobre os horizontes
chova um poema de chuva
um poema sem poeta
e entenda-o quem ensinou às andorinhas o seu caminho de inverno
um poema inoportuno
que tenha de ser ouvido por todos até ao fim
que nos suponha como o chão que bebe a chuva
um poema maligno e irrestricto
praga do Egipto
sem um profeta que o vá vender
a um faraó descalço e coroado
em nome de um deus vivo e inventado
eu peço à chuva um poema de chuva
eu quero ser chuva e transformar-me
em todas as coisas evaporadas
enroladas
pelos cabelos do vento
e se devolva à terra o seu perfume
e à servidão humana o seu desejo
In Andamento F.M.Gonçalves
mg.