Douro Coroado, de Manuela Morais
Este livrinho, de Manuela Morais, é um cântico ao Douro, não apenas ao rio, mas à
própria região. A autora refere no Prelúdio: “Este livrinho é constituído por quatro dezenas de
poemas. Mais dois, que se expressam à parte do tema Douro Coroado, exemplificam-nos como
é essencial, fixar as memórias, a saudade e a esperança dos lugares que em profundidade nos
apaixonaram, mas muitíssimo mais importante é guardar, no coração, as pessoas que nos
amaram e privaram no nosso quotidiano”(p.10). Cada poema é composto por vinte e um
versos, número que, pela sua simbologia, representa a perfeição, a ligação entre o céu e a
terra e a sabedoria divina. Vinte e um era também o momento de atingir a maioridade e da
responsabilidade.
As raízes telúricas durienses são aqui evocadas para exprimir o trabalho árduo que o
homem padeceu ao rasgar as montanhas e transformar a terra em socalcos para produção do
néctar divino, o afamado vinho do Porto; portanto, a referência aos deuses pagãos -- Dionísio
(Baco) que desposa Ariadne, uma deusa egeia da vegetação, nomeadamente das árvores
–representa a união do casal divino. Há, por isso, poderes que excedem o natural através dos
mistérios. A terra duriense é apresentada como uma espécie de paraíso (éden paradisíaco)
serpenteada pelo Douro que participa em todos os versos ora como objeto amado, ora como
cenário de amantes que, nas suas margens, viveram, num passado distante, o seu primeiro
amor.
A conjugação dos sentimentos com a água arrasta o leitor para o nascimento do ser e
do amor e, simultaneamente, complexifica a leitura dos poemas, porquanto o sujeito poético
extravasa as emoções para o Douro, gerando uma personificação entre o eu poético, o tu e o
nós. Nesta osmose há uma triangulação amorosa visível no recurso aos determinantes e
pronomes: “Este Douro sagrado/ dá-me vida, mil anos de vida/ quando o mundo parece
terminar! /Segura-me a memória/da força do teu olhar, /a alegria do forte/abraço, / sentir o
teu peito/no meu/ a descansar…” O jogo de – este, me, teu e meu – coloca o Douro como
participante e fonte de esperança da vida do sujeito, mas assume prioritariamente o papel de
testemunho do amor entre dois amantes, ao permitir que a memória faça renascer o passado.
Assim, a interpretação direciona-se mais para o amor natural entre seres e não metafórica,
plasmada no rio. A verdade é que as designações selecionadas para o rio são tantas e tão
elevadas que a água do Douro chega a sugerir a corrente sanguínea que alimenta o corpo e o
espírito, num estado de “estranho equilíbrio/de ficar ou de partir…” (p.54).
Após as maravilhosas e misteriosas palavras dirigidas ao Douro, os poemas revelam
mais a intimidade do sujeito poético, quando este confessa que as roseiras secaram “no nosso
jardim”, revelando sofrimento com a ausência do tu “assumindo o vestígio da tua ausência”
(p.52) e, ao reconhecer o poder do Douro, suplica-lhe: “Douro, meu Douro encantado,
/ressuscita/os corpos sem vida! O amor, /o meu primeiro amor, não se pode perder, (p.56).
O Douro é nascente de esperança e incentiva o sujeito de enunciação a viver o amor
com urgência e a saborear “um cacho de uvas de moscatel”; esse Douro que foi companheiro
da infância, do amor e continua a pulsar na vida dos seus conterrâneos, é um Douro misterioso
e sagrado, como designou a autora. Mais ainda, ele foi “coroado” para simbolizar a reunião de
forças exteriores e interiores com valor ético e cósmico.
Este livrinho revela-nos a diferença entre a vida e a morte, gerando espaços de
“sentimentos de leveza” que a escrita ajuda a preencher, através da capacidade/consciência
do sujeito poder relacionar as várias sequências temporais.
Parabéns à autora!
Dra. Júlia Reis Serra
Júlia Serra
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